O Cerrado já perdeu metade de seu tamanho. Sem ele, não haverá água para beber, nem para plantações de soja e fazendas de gado
Há pouco mais de dois anos uma das revistas mais prestigiadas do mundo, a National Geographic, publicou uma extensa reportagem intitulada “Por que o Cerrado é o bioma mais ameaçado do Brasil”. Assinado pela repórter Adele Santelli, o texto é um primor do jornalismo científico. Li e reli a reportagem, pois vejo nela um resumo perfeito da situação calamitosa do segundo maior bioma brasileiro. Sim, pois o Cerrado só perde para a Amazônia em tamanho, mas ganha em muitos outros aspectos, como poderá ser lido no texto abaixo produzido a partir do trabalho de Santelli.
O Cerrado é uma savana. Ou seja, uma floresta relativamente plana, cuja vegetação predominante são as plantas gramíneas, com árvores esparsas e arbustos isolados ou em pequenos grupos. A nossa savana, segundo a reportagem, é a mais rica e úmida do planeta e tem mais flores do que a própria Amazônia.
A reportagem da National Geographic já começa com um alerta:
“Em um território com a metade do tamanho da Amazônia, o Cerrado é responsável pela água de quase 70% das bacias hidrográficas do Brasil e abriga 5% da biodiversidade de todo o mundo.”
Traduzindo: sem o Cerrado, não haverá água nos próximos anos. Nem para beber, e muito menos para irrigar as gigantescas plantações de soja e as fazendas de gado.
O problema, na opinião de Adele Santelli, é que o Cerrado “não habita o imaginário de boa parte dos brasileiros”, apesar de preencher 23% do território do País, com mais de 200 milhões de hectares. E de estar espalhado pelas cinco regiões. Tem Cerrado inclusive no Sul. A nossa savana se estende por Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal.
Ao escrever que muitos consideram o Cerrado um “sertão monótono”, um “quase deserto”, a repórter completa:
“Com arbustos poucos chamativos e árvores tortas, ele abriga 12.599 espécies de plantas e ao menos 2.653 de animais vertebrados, muitas delas endêmicas”, ou seja, que só existem no Cerrado.
E esses números ainda estão crescendo, apesar de todos os anos o agronegócio transformar um pedaço do Cerrado em pasto ou lavoura. Recentemente a pesquisadora Indiara Ferreira, bióloga da Universidade Federal de Goiás (UFG), identificou uma nova espécie de árvore do Cerrado: a Oxandra cerradensis. Ela faz parte do gênero Oxandra e já foram identificadas outras três espécies do mesmo grupo: a Oxandra reticulata, a Oxandra saxicola e a Oxandra sessiflora.
Oxandra cerradensis Foto: Serviço Florestal Brasileiro
Essa descoberta é muito importante pois mostra que o gênero Oxandra, que pertence à família Annonaceae, é mais rico do que se imaginava. E quanto maior a diversidade de uma espécie, mais importante ela é para o meio ambiente.
Regime de chuvas
Voltando à reportagem da revista National Geographic, nos chamou a atenção outro problema. A devastação do Cerrado está alterando o regime de chuvas. A agricultura e a pecuária intensivas, ou seja, praticada em grandes extensões, com grande número de cabeças de gado e com a retirada de toda a cobertura vegetal, vêm modificando o funcionamento dos chamados “ciclos geoquímicos” do Cerrado. Isso quer dizer o seguinte: sem florestas no Cerrado, haverá mais enchentes, menos infiltração da chuva no solo e mais chances de faltar água num breve futuro. Menos floresta, menos água. É simples assim.
O que fazer para manter o bioma preservado?
Os cientistas e protetores do Cerrado sabem o que fazer para salvar o Cerrado, suas plantas e bichos, e a água que ele produz. Umas das saídas é criar corredores naturais entre as reservas já protegidas, para permitir a troca de bichos e plantas, pois isso fortalece o bioma. Outra coisa fundamental é parar de derrubar a vegetação nativa. O Cerrado já perdeu quase a metade de seu tamanho natural para a agricultura (23 milhões de hectares) e para a pecuária (47 milhões de hectares).
O certo seria não derrubar mais nenhum hectare e aproveitar as pastagens abandonadas, que são muitas, para novos projetos do agronegócio. E por último, reflorestar áreas que possam fazer a ligação entre regiões preservadas, para fazer o trânsito de animais e plantas que citamos logo acima.
Se não fizermos isso, corremos o risco de transformar a nossa savana num grande deserto, sem plantas, sem bichos e sem água.
Tem crescido na nova geração de proprietários de terras do Cerrado uma visão diferente daquela que via a nossa região apenas como uma grande planície boa para plantar soja e milho e criar boi.
Vamos conhecer a experiência do médico Adão Dayrell, que cresceu na região de Unaí (MG), saiu para estudar medicina e voltou para a fazenda do pai nos anos 1990. Viu que felizmente o pai fazia uma criação extensiva de gado, ou seja, sem praticamente derrubar a mata. Em parte da fazenda da família ele criou o Santuário Diadorim, que nós iremos conhecer.
Fazenda correu risco de ser desapropriada por manter o Cerrado
“No passado, a nossa fazenda foi ameaçada de desapropriação, pois diziam que ela era uma fazenda improdutiva. Então você preservar é uma ameaça. E se a preservação do Cerrado é importante, por que isso vira uma arma contra o dono, por que sua terra é vista como improdutiva?”, pergunta Adão Dayrell.
Segundo ele, agora é que começa a se pensar outro tipo de produtividade para a terra: não apenas a de produzir alimentos, que em sua maior parte viram produtos para exportação.
“Quando você mantém o Cerrado, você preserva a terra, produz água, umidade e preserva as espécies. É impressionante como esse lugar é visitado por papagaios, araras e outros pássaros, que vêm comer o pequi e outras frutas”, disse Adão.
Esse modelo antigo que imperava naquela região permitiu que, durante décadas, o Cerrado fosse preservado. A chegada da soja e a ampliação dos rebanhos bovinos nos últimos quarenta anos é que aceleraram o desmatamento do bioma original.
Dos herdeiros do seu Fernando, uma das irmãs de Adão hoje mora em Belo Horizonte e não pode mais cuidar da parte da fazenda que lhe cabe e quer vender a parte dela. O temor dele é que quem compre a parte da irmã, que faz divisa com o Santuário Diadorim, derrube o resto de Cerrado para plantar soja.
Essa entrevista dele ao nosso jornal é também um grito de socorro. Quem sabe alguém que ler esse texto se interesse por ser vizinho do Santuário Diadorim e ajude a perpetuar o sonho do seu Fernando de conseguir criar o gado, sobreviver e manter o Cerrado preservado?
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