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Beto Seabra

Livro de coronel da reserva expõe corrupção no Exército

"Diários da Caserna", do coronel da reserva Rubens Pierrotti Jr., tem um de seus personagens principais inspirado em proeminente figura política brasileira



O ano de 2024 será marcado por eleições municipais em todo o país, com milhares de militares se candidatando. Como é costume nessa época, acompanhamos candidatos fazendo promessas que dificilmente serão cumpridas e se colocando como bastiões da honestidade, quando, não raramente, já se envolveram em algum escândalo de corrupção. Um exemplo desse tipo de candidato não irá participar diretamente do pleito eleitoral deste ano, mas participou e saiu vitorioso das eleições realizadas em 2022. Trata-se do general da reserva do Exército Brasileiro, ex-vice-presidente da República, Hamilton Mourão, que foi eleito senador pelo Rio Grande do Sul.


No final de 2023, já como senador, Mourão fez um pronunciamento no Plenário em defesa da honestidade e contra a corrupção, afirmando que uma sociedade corrupta e desonesta estaria condenada. No entanto, o discurso do general da reserva parece ir de encontro a suas atitudes se tomarmos como verdade o que lemos em “Diários da Caserna – Dossiê Smart: a história que o exército quer riscar”, de autoria de alguém que parece conhecê-lo bem, o coronel de artilharia da reserva e advogado Rubens Pierrotti Jr., livro recentemente publicado pela Editora Labrador.


“Diários da Caserna” é um romance de ficção inspirado em uma história real. A obra gira em torno da aquisição por parte do Exército Brasileiro de um simulador militar de artilharia denominado Smart em um processo marcado por supostos crimes e improbidades administrativas. De fato, esse episódio ocorreu, em boa parte da década de 2010, no seio das Forças Armadas. Há notícias em diversos veículos de comunicação atestando-o e relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) detalhando as irregularidades. O autor do livro, aqui é bom que se diga, inclusive participou do projeto; atuou como supervisor operacional, sendo voz de resistência aos abusos de algumas figuras do Exército, oficiais de alta patente com comportamentos bastante questionáveis (e reprováveis), citados no relatório do TCU.


Para recontar essa história, o coronel de artilharia da reserva e advogado recorreu à forma narrativa “roman à clef” (romance de chave, na tradução livre do francês), em que pessoas reais são tratadas por meio de personagens “fictícios”. Entre as pessoas que tiveram seus nomes trocados na obra está o senador Hamilton Mourão. À época, ele era general da ativa e gerenciou o projeto que buscava desenvolver o simulador. No livro, fica claro que ele é representado pelo personagem general Simão, figura bastante controversa, responsável por atropelar normas e o próprio contrato firmado pelo Exército no Projeto Smart para favorecer uma certa indústria espanhola.


Pierrotti, aliás, também está no livro. Ele é Battaglia, oficial do Exército (supervisor do Projeto Smart por cerca de três anos, que resiste aos desmandos impostos pelo general, atuando como contraponto ético e moral de Simão). É a partir de três entrevistas concedidas pelo protagonista ao jornal El País que a história do Projeto Smart se revela ao leitor. Battaglia conta o que sabe, baseado no que testemunhou in loco, com respaldo em documentos que guardou, em informações obtidas de contatos privilegiados e por meio de um olhar treinado, que permitiu inferir conclusões a partir do que vinha estampado no Diário Oficial e nos boletins do próprio Exército.


Através dos relatos de Battaglia, ficamos sabendo que o Projeto Smart foi problemático do início ao fim. Mas calma! A história é escrita de forma habilidosa, revelando aos poucos os motivos, pari passu às descobertas dos próprios envolvidos no projeto, o que faz com que o leitor se debruce cada vez mais numa narrativa repleta de suspenses. Sem dar spoiler (até porque o final é mesmo surpreendente), ficamos sabendo que o projeto nasceu de um capricho do general Aureliano, personagem que insiste obstinadamente na aquisição do simulador de artilharia, como forma, pasme, de pagar um favor a “Papa Velasco”, colega maçom, representante comercial da Lokitec, empresa que vem a ser contratada. Para atingir seu intento, o general não hesita em desprezar pareceres contrários ao negócio, exarados por especialistas do próprio Exército. Tentativa de contratação da indústria espanhola sem licitação seguida por uma licitação direcionada e fraudulenta são só o prenúncio da tresloucada sequência de desatinos dos superiores fardados


O que começou ruim, consegue ficar ainda pior. O desenvolvimento do simulador, conta Battaglia, sofre sucessivos atrasos, nunca chegando perto daquilo que fora contratado. Para piorar, os oficiais responsáveis pelo projeto, em especial Battaglia e o fiscal do contrato Aristóteles, precisavam lidar cotidianamente com o assédio moral exercido pelo general Simão, que, estranhamente, defende os interesses da empresa contratada em detrimento dos interesses do Exército e do Brasil.


O comportamento de Simão tem enfoque especial nos depoimentos trazidos pelo protagonista. Isso porque, além de pressionar seus comandados, o general age de modo nada republicano, na troca de favores com as figuras mais proeminentes da Lokitec. Em certa altura, o narrador comenta: “Quem iria recriminar o poderoso general por usar o ‘suprimento de fundos’ nessas atividades, espécie de cartão corporativo dos fardados? Simão classificava esses jantares de luxo como ‘compromissos oficiais’. Estava tudo perfeitamente justificado! Os vinhos eram escolhidos pelo lado direito do cardápio, entre os mais caros”, deixando evidente que, apesar do seu discurso em favor da honestidade, general Simão/Mourão (“a arte imita a vida”) tem em seu histórico envolvimento em atos, no mínimo, eticamente bastante reprováveis. No tempo em que esteve na Vice-Presidência da República, diga-se de passagem, Mourão gastou R$ 3,8 milhões no cartão corporativo.


O desfecho do projeto, como se pode concluir, não é nada alentador. A certa altura da obra, o protagonista constata que, a despeito dos diversos avisos que ele e alguns de seus colegas deram, os defeitos do simulador permaneceram, o que não impediu o Exército Brasileiro de dar o projeto como terminado de maneira bem-sucedida e realizar o pagamento integral à indústria espanhola. Ao final, afirma o narrador, a instituição recebeu um simulador repleto de falhas, cuja tecnologia estava defasada mesmo antes de começar a “funcionar”, resultando em um prejuízo de dezenas de milhões ao país. Embora ninguém tenha sido punido, e os Ministros do TCU tenham decidido “perdoar” o Exército dessa vez, emitindo meras recomendações para que o que aconteceu no Projeto SAFO-SIMAF (nomes reais), não aconteça novamente, a estimativa é que o episódio tenha acarretado prejuízo de mais de R$ 100 milhões aos cofres públicos.


Narrativa envolvente


Engana-se quem pensa que vai encontrar, nas páginas de “Diários da Caserna”, um linguajar técnico, típico de relatórios, ou expressões da caserna inteligíveis apenas aos militares. O romance dramático, baseado em episódios que de fato ocorreram, presenteia o leitor com uma narrativa envolvente. Dá para esquecer que o livro tem 520 páginas (acima da média nacional). A leitura flui, atraindo o leitor para perto da trama a cada página, com fôlego para mais e mais.


Contribui para isso o aprofundamento que Pierrotti dá ao seu protagonista. Ao acompanhar os desdobramentos do Projeto Smart na vida de Battaglia, entre os quais o término de seu casamento, o surgimento da depressão e a luta por manter sua reputação intacta e recobrar sua saúde mental, o leitor se aproxima da face humana da obra, o que, certamente, torna a experiência da leitura ainda mais agradável.


Ademais, a descrição de como funcionam as engrenagens do Exército Brasileiro por quem já a vivenciou por dentro é um chamariz para todos aqueles que buscam compreender uma das mais importantes instituições do país, tida pela maioria da população como incorruptível, mas que, como Pierrotti deixa claro em seus diários, está longe de ser. “A história também é permeada de situações que concedem ao leitor a oportunidade de conhecer traços de estruturas organizacionais de instituições federais, aspectos de socialização da denominada ‘família militar’ e rotinas gerenciais administrativas praticadas no serviço público, especialmente no âmbito das unidades militares”, ficamos sabendo logo no prefácio. Esse ponto ganha ainda mais relevância, tendo em vista os fatos recentes de nossa história, como a participação em massa de militares no governo passado, muitos dos quais se revelando inaptos para as funções exercidas, e o envolvimento (ainda nebuloso) de integrantes da instituição na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.


Ao fim e ao cabo, como percebemos, “Diários da Caserna – Dossiê Smart: a história que o exército quer riscar” também serve de alerta contra a hipocrisia de candidatos em período eleitoral.


Ficha Técnica:


Título: Diários da Caserna - Dossiê Smart - A história que o exército quer riscar


Autor: Rubens Pierrotti Jr.


Páginas: 528


Preço de capa: R$ 69,90


Preço e-book: R$ 49,90


Editora: Labrador


Gênero: ficção brasileira

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4 Comments

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Guest
Oct 06
Rated 5 out of 5 stars.

Curiosa para ler esse livro. Defendo que o exército seja tratado como uma instituição pública semelhante às demais, sem privilégios como tribunal militar, escola militar e transporte gratuito para os funcionários.

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Guest
Nov 05
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Exato! E sem direito a viver de ajuda de custo de três ou quatro salários extras a cada remoção “forçada” de três em três anos, coitados…

Cada um defende o indefensável que lhe aprouver… uma pena mesmo…

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Guest
Oct 02
Rated 5 out of 5 stars.

Excelente, oportuno e necessário alerta em tempos complexos.

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