Pão e poesia. Juntos e em movimento crescente
Por Ana Lúcia Medeiros
Um caboclo sonhador que sabe alçar voo, mas tem os pés bem fincados no chão. Essa é uma das possibilidades de se tentar traduzir um pouco do perfil plural do presidente da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba, uma agência de fomento em ascensão. Cada vez mais situada na concretude local, a Fapesq-PB tem como propósito valorizar pesquisadores, estudantes e a sociedade paraibana, ao mesmo tempo em que se articula ativamente com agências e pesquisadores de outros estados, sintonizada com a política nacional de incentivo à pesquisa focada em ciência, tecnologia e inovação vislumbrado o desenvolvimento científico-econômico-social da região e do país como um todo, em sintonia com as tendências mundiais.
Rangel Junior contagia com sua energia. Ao olharmos para o modo como ele encara a rotina, a sensação que temos é a de que “o bom da vida vai prosseguir”, nas palavras de Dominguinhos e Gilberto Gil. Gosta de pessoas, arte, ciência, da vida. Utiliza ferramentas como Facebook e Instagram para compartilhar, na linguagem própria desses espaços, momentos poéticos, de luta social, de conhecimento científico. Ali dá pra conhecer um pouco de suas muitas faces. Sensível e criativo, traço do poeta, compositor, cantor; profundo e atento à concretude, seu lado pesquisador; ativo e ousado, sua versão gestor. Une todas essas “partes” de si (lembrando aqui Ferreira Gullar) em tudo o que faz, sempre pautado no equilíbrio. Influência da formação em psicologia? Um modo de buscar ser feliz nas pequenas coisas? Quem sabe...?
O podcast que comanda sobre ciência e tecnologia é uma “prosa” com pessoas das áreas da educação e da comunicação com foco no combate à desinformação. No canal do Youtube da Fapesq (que circula também nos canais do Parque Tecnológico e da Universidade Estadual da Paraíba) busca fazer um repositório de registro biográfico de pesquisadoras e pesquisadores de lugares distintos sobre as atividades e a vida dessas pessoas. De dentro de seu escritório, em casa, vive o processo de criação com parceiros da poesia e da música, resgatando memórias e intensificando o presente.
Como reitor por dois mandatos, soube transformar o campus universitário de uma cidade do interior em um espaço de integração com o Brasil, seja nas áreas ligadas à tecnologia pura ou nos arranjos socialmente construídos em áreas como economia, sociologia, psicologia, saúde, com reconhecimento ao papel da comunicação como contribuição para todos os campos do conhecimento.
Vejamos na entrevista concedida a Ana Lúcia Medeiros o que Rangel Junior tem a mostrar sobre essas versões que seu perfil apresenta.
Boa leitura!
Você tem perfil plural. É “contador de histórias”, como se autodefine, compositor, escritor, professor, pesquisador e gestor. Como conciliar a rotina com atividades acadêmico-administrativas e produção artístico-literária? Alguma tática para manter o equilíbrio e fazer aquilo que se propõe a realizar no cotidiano?
Sou multi. Desde sempre. Logo cedo tive um patrão pra chamar de meu. E foi sempre assim: trabalho, estudo, música, poesia, muita leitura e certa atividade boêmia. Me tornei professor por improviso e oportunidade. Em 1988, graduado em psicologia, passei a servidor público efetivo. O Estado-patrão, o povo-patrão. Sempre conciliando todas as atividades profissionais com a atividade política, um pouco de música, literatura e ativismo cultural.
Percebem-se claramente dois aspectos em suas experiências enquanto pesquisador: o rigor científico e o empírico como ponto de partida em suas investigações. Podemos dizer que você busca abordar em suas inquietações na academia traços da própria trajetória?
Defendo a ideia de que a prática profissional não pode se separar da vida cotidiana. Em todos os sentidos. No mestrado, pesquisei as relações de poder na universidade pública, a partir dos processos de eleição de dirigentes. Eu era um militante político do movimento sindical E logo depois me tornei também dirigente da universidade. No doutorado, a temática tem relação direta com minhas inquietações e compromisso com a arte, a cultura e sua difusão. Mais adiante, aproximando-se o processo de aposentadoria na universidade e antecipando um planejamento neste sentido, aceitei o convite de uma colega para integrar núcleo de pesquisa e também lecionar a disciplina Psicologia do Envelhecimento. No fim das contas, acabo sendo cobaia de mim mesmo.
Com postura revolucionária, o paraibano Lynaldo Cavalcanti abriu fronteiras, colocando a Paraíba na vanguarda nas áreas de educação, ciência e tecnologia, a partir da segunda metade do século passado. Foi reverenciado no Brasil, na Europa e no Canadá. Como reitor, ampliou horizontes de jovens paraibanos ao inserir no ambiente universitário professores e pesquisadores de ponta do Brasil e da Europa. Presidente do CNPq, destacou-se pela valorização da multidisciplinaridade e do trabalho em equipe. Seria Lynaldo Cavalcante uma inspiração para suas ações como reitor ou como atual presidente da principal agência de fomento da Paraíba?
O professor Lynaldo sempre foi e será uma referência para todos os paraibanos (e para muita gente do país) que desenvolvem atividades de pesquisa, tecnologia e inovação. Sua história de vida e seus exemplos de visionário e empreendedor na área pública deixaram marcas fundamentais na história da ciência e da tecnologia no Brasil e, de modo particular, na Paraíba. Muito do que se tem hoje em termos de resultados objetivos está diretamente relacionado com todas as sementes que ele plantou, principalmente em meio às adversidades dos anos 1960 e 1970. Para mim é uma grande referência de criatividade e ousadia.
Normalmente se associa ciência e tecnologia às chamadas “áreas duras” (química, física, matemática, engenharias...), ligadas à tecnologia pura. É possível, na Fapesq, expandir esse olhar e induzir fomento às tecnologias sociais, levando em conta os arranjos socialmente construídos em áreas como economia, sociologia, psicologia, saúde?
Ampliar essa visão é uma tentativa constante neste curto espaço de tempo na Fundação, principalmente no sentido de assegurar uma abertura maior de financiamento em todos os campos e áreas de atuação, notadamente nas ciências humanas e sociais, historicamente colocadas em plano secundário no que diz respeito a apoio e fomento.
As dinâmicas que se estabeleceram no ambiente digital durante a pandemia da Covid-19 colocaram em xeque o papel da ciência no combate ao coronavírus. A circulação de mentiras na internet desafiou o conhecimento científico e exigiu medidas emergenciais no enfrentamento à desinformação, especialmente nos movimentos antivacina orquestrados pela ultradireita no Brasil e no mundo. Diante desse cenário complexo e em continuidade, como você vê o papel da comunicação no processo de reordenamento da valorização da pesquisa científica?
As sequelas da pandemia estão espalhadas e entranhadas no tecido social, não somente brasileiro, mas no mundo inteiro em maior ou menor grau. O trabalho tornou-se mais difícil, principalmente em razão dos novos modos de comunicação digital que, se por um lado democratizou a geração de notícias e de opiniões, por outro lado permitiu também a proliferação de uma espécie de imbecilidade coletiva, da ignorância e da maldade, por meio de uma comunicação que visa muito mais destruir e enfraquecer as relações sociais do que efetivamente construir uma sociedade mais democrática.
Você não teve bicicleta na infância no interior. Mas teve um violão aos 14 anos. Esse que o acompanha até hoje. A bicicleta você adotou há pouco tempo. E faz dela mais um veículo para novos circuitos de amizade. Tudo isso você traz como objeto de suas produções acadêmicas e poéticas. Conciliar mente, corpo e afetos seria uma espécie de multidisciplinaridade na vida?
É verdade. Eu acolho e registro ideias para músicas, canções ou poesias nas situações mais inusitadas. Caminhando na rua, pedalando sozinho ou acompanhado em trilhas rurais. É nesses momentos que um lampejo de inspiração ou intuição traz uma pequena frase, uma cena, uma imagem e isso registrado vai se transformar depois, com muito trabalho, em alguma produção.
À frente da Fapesq, você tem o apoio manifesto da ministra da CT&I, Luciana Santos. Como você vislumbra valorizar o potencial humano no estado, em sintonia com projetos nacionais e quiçá, internacionais, nas áreas de educação, empreendimento, ciência, tecnologia e inovação?
A presença da ministra Luciana Santos no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação é um ponto de inflexão e de virada na história do Ministério, mesmo porque é também a primeira mulher a comandar uma pasta tão importante para o país. Aqui nós estamos sempre em contato e buscando sintonizar a nossa política em âmbito estadual com o movimento nacional. Tanto no sentido de estimular e fomentar novas práticas, como no sentido de fortalecer toda a base da ciência e tecnologia já existente, principalmente em razão de estarmos no Brasil com toda essa infraestrutura vinculada ao setor público, notadamente nas universidades públicas, institutos e órgãos outros federais e estaduais de pesquisa.
Durante décadas, a Capes e o CNPq incentivaram bolsistas a se dedicarem exclusivamente aos estudos. Era exigência para obtenção do apoio. Isso vem mudando nos últimos anos. Mas, em números não divulgados, muitos mestres e doutores, com trajetória estudantil de sucesso, estão desempregados. Como ex-reitor que soube valorizar o potencial transformador da educação na sociedade, e atual presidente de uma importante fundação de pesquisa, como você vê esse quadro?
O Brasil precisa retomar o mais rapidamente possível a rota do desenvolvimento econômico. Isso vem sendo planejado por parte do governo central e, em larga medida, por governos estaduais sintonizados com essa política, no sentido de impulsionar um novo ciclo de desenvolvimento. Principalmente por intermédio da indústria ou aquilo que o governo federal chama de “nova indústria brasileira”, uma indústria de base tecnológica e científica. Queremos somar esforços nesse sentido. E será somente com o fortalecimento desse setor que os empregos novos, também de base tecnológica e científica, surgirão, abrindo caminho e possibilidades de realização profissional e de inserção no mundo do trabalho para os mestres e doutores formados, além da formação de novos mestres e doutores em sintonia com este novo momento do desenvolvimento nacional.
O que provoca indignação?
A injustiça, sem dúvidas, no primeiro plano. A desigualdade social e uma democracia de papel em vez de uma democracia plena de justiça social ou a busca de equidades de ordem material é o que almejo e vejo como caminho para a redução de tais indignações.
Há razões para esperançar?
Eu não vejo saída fora da educação e da política. São pilares para fortalecer o processo democrático, fortalecer laços de conexão e coesão social. Vivemos um país aparentemente cindido por questões de ordem ideológica. Mas, para mim, isso é apenas o que aparece em primeiro plano, apenas a fachada. A verdadeira divisão, a verdadeira e mais cruel polarização social é entre a opulência e a miséria, entre os poucos que têm tudo e os milhões que nada têm.
Perfil do entrevistado
Antônio Guedes Rangel Junior nasceu em Juazeirinho (PB), em 1962.
Filho de um casal de operários do sapato.
Avô e pai poetas, mãe de voz afinada.
Estudou sempre em escola pública.
Cantor, escritor e compositor.
Presidente da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba (Fapesq-PB), desde janeiro de 2023.
Doutor em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PROPEd/UERJ), onde defendeu a tese “Juventude Paraibana e Música Popular: Contribuições ao campo de estudo das culturas juvenis, em 2012.
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Dissertação (1997): “Mecanismos de poder na Universidade – Uma história de disputas e 'jeitinhos' à brasileira”.
Licenciado em Psicologia e graduado Psicólogo pela Universidade Regional do Nordeste/ Universidade Estadual da Paraíba (URNe/UEPB).
Professor no ensino fundamental em Juazeirinho (1985-1989).
Professor do Departamento de Psicologia da UEPB (1988 - 2023).
Vice-reitor da UEPB (1996-2000).
Reitor da UEPB entre 2012 e 2020.
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