É preciso salvar o Cerrado, bioma que leva água e vida a outras regiões
Na chácara onde mora, em Brasília, Marcos Woortmann aprende com o Cerrado o sentido de resiliência. Provedor de serviços ambientais significativos para o país, sobretudo dentro de um foco hidrológico, o Cerrado vem sendo devastado pelo fogo. Mas as intempéries cotidianas não constrangem a própria existência e o bioma encontra forças para resfriar a atmosfera e alimentar com água e vida outras regiões.
Em conversa com Ana Lúcia Medeiros, Marcos Woortmann diz que é importante celebrar o 11 de setembro, Dia do Cerrado; fala da luta cotidiana pela sobrevivência do bioma, ameaçado pelas queimadas e pela cultura do agronegócio que, ao promover a retirada da vegetação, cria ilhas de calor; e defende que a sociedade brasileira precisa se unir na luta por melhores condições de vida no país.
Confira os detalhes a seguir.
É possível fazer correlações entre desmatamento do Cerrado e aquecimento do Planalto Central?
O Cerrado é um sistema biológico evoluído muito complexo e completamente adaptado à região do Planalto Central do Brasil. É um sistema único. Considerado no pico de evolução. Inclusive por ser o bioma presente em um dos solos mais antigos do Planeta. Exatamente por isso exposto às intempéries e com sistemas biológicos em evolução há milhões de anos. Por essa razão, o Cerrado provê toda uma sorte de serviços ambientais muito significativos, sobretudo dentro de um foco hidrológico. Todo o processo de evapotranspiração, por exemplo, capitaneado pelo Cerrado, é um processo que naturalmente resfria a atmosfera e também conduz os rios aéreos amazônicos pelo território nacional. Quando nós falamos dos rios aéreos amazônicos, o Cerrado são as canaletas por onde eles se disseminam, se capilarizam pelo território. E quando a gente retira essa cobertura vegetal, esse fluxo é completamente interrompido. Certas áreas vão receber muita água, causando enchentes, outras áreas não vão receber água. É provável que, nas duas áreas, haja grande aquecimento porque esse processo gradual, perene, de evapotranspiração, e a própria cobertura do solo provida pela vegetação, tem um efeito de tornar mais aprazível a temperatura, mais propícia à vida humana, com menos extremos de calor. Então, o modelo atual do agronegócio, que promove a retirada completa da vegetação, sistemicamente cria ilhas de calor gigantescas nas regiões do Planalto Central, sobretudo nas áreas periurbanas e rurais próximas a aglomerações urbanas, que são as áreas de maior utilização do solo para fins de agricultura, com consequências imediatas no calor, sentido sobretudo por essas populações.
Você defende a aprovação, pelo Congresso Nacional, de um benefício de auxílio climático emergencial para os afetados por eventos climáticos extremos, como enchentes e secas. Como, na prática, funcionaria esse benefício?
Esse é uma matéria ainda em debate no Congresso Nacional. Para ser regulamentada, ela precisa estar adequada ao Sistema Único de Assistência Social (Suas) enquanto sistema de cobertura que assegura a observação dos direitos. O direito à segurança climática, embora seja ainda um direito previsto apenas na PEC do Clima, em tramitação no congresso há vários anos, ainda não aprovada, é derivada de outros direitos. Um processo ainda em discussão. E um ponto importante é entender que é necessário auxiliar as pessoas. E é mais prático também, como país, dar recursos diretamente às pessoas afetadas por desastres climáticos. Todas as operações de logística, estruturantes do Estado brasileiro, como em qualquer lugar, demandam tempo. E a necessidade de realocação, de atendimento imediato, não pode esperar por esse tipo de operação. Por isso, garantir um benefício imediato a populações atingidas por catástrofes, em primeiro lugar, alivia imediatamente o sofrimento dessas pessoas e, em segundo lugar, auxilia que contingentes muito expressivos dessas populações possam, por si, sair da situação de emergência em que se encontram, facilitando o trabalho estrutural a ser realizado pelo Estado. Esse é o espírito do projeto, que é importante como garantia de direitos, como estrategicamente, considerando-se a probabilidade de as tragédias climáticas se tornarem cada vez mais frequentes.
Que estratégias a economia política brasileira pode adotar para enfrentar os desafios ambientais que ameaçam a biodiversidade do país?
Em primeiro lugar, é necessário encarar a realidade como ela é. Não é possível continuar fechando os olhos para a realidade das mudanças climáticas. Hoje, um dos pilares da economia política brasileira, o mais veemente, o mais militante, inclusive, é o agronegócio. E esse modelo estabelecido ao longo dos séculos na cultura política brasileira é absolutamente insustentável. Não é possível continuar um processo de remoção da cobertura do solo, produção de monoculturas para exportação baseada na capacidade hídrica de um país que depletou os seus recursos hídricos mais básicos, que são suas florestas. O modelo atual da agricultura é baseado em uma riqueza que ela mesma vem destruindo. A riqueza da agricultura vem da riqueza hídrica do país, que vem da riqueza de florestas, que hoje estão chegando a um ponto de não retorno, como é o caso da Amazônia, cujo desmatamento, embora tenha caído, continua aumentando. Com aproximadamente mais 5% a 7% de desmatamento de sua área total, a Amazônia pode entrar em um ciclo de savanização sem retorno. Isso significa menos chuvas, maior concentração de chuvas e, naturalmente, a quebra das safras. A economia política brasileira tal como é, não sobreviverá a esse processo. A não ser que se adapte. E, sobretudo, mude seu caráter monocultor, concentrador de terra e voltado à exportação. É necessário diversificar o modo de produção da terra para práticas restaurativas, como agricultura sintrópica, técnicas de permacultura, que permitam rotação de safras, consorciamento de safras e, sobretudo, um modo de agricultura que favoreça a recuperação biológica do solo, que é precisamente o modelo que existiu historicamente no Brasil, antes do descobrimento, responsável pela existência das terras mais férteis da Amazônia, que são as terras pretas de índio. Um modelo absolutamente viável, que o Brasil tem como fazer. Tem ciência e conhecimento para garantir a escalabilidade e as cadeias econômicas necessárias para substituir um modelo de produção predatório de alimentos implementado no Brasil nos anos 1960 e que até hoje nós pagamos o preço por isso.
Diante das tragédias que assolam os biomas brasileiros, é possível apontar algum avanço no poder legislativo em busca de soluções efetivas para as consequências das mudanças climáticas?
Sim. Existem vitórias e elas são importantes. Destaco a aprovação da PL 4129 de 2021, que traz a obrigatoriedade e as diretrizes para a construção de planos de adaptação climática para estados e municípios. Um projeto que foi debatido e construído a muitas mãos, com grande participação da sociedade civil, da academia e de especialistas, trazendo bons exemplos construídos no Brasil e no exterior e que, espero, o Brasil possa colher os frutos já em curto prazo, a partir da aproximação do poder público com a realidade das mudanças climáticas e, dentro de um processo democraticamente conduzido, também a sociedade civil possa se engajar nisso e conduzir diversos níveis de adaptação às mudanças climáticas. É importante considerar que a escala de adaptação de cidades às mudanças climáticas é gigantesca. Envolve núcleos urbanos, comunidades periféricas, áreas periurbanas, além de condomínios, unidades domiciliares, sistemas de transporte, de produção de energia, de produção de energia, de produção de alimento, de segurança hídrica. Tudo isso é absolutamente urgente e, nesse caso, o Congresso Nacional deu uma resposta adequada e, espero, possamos colher, como país, os resultados disso.
Como a sociedade civil pode reagir para resistir a tudo isso?
Em primeiro lugar, a sociedade precisa votar conscientemente, entender a importância da política. Política não é um exercício de debates dentro de uma moda, ou dentro de uma opinião massificada e dentro de um comportamento de manada que acontece de quatro em quatro anos. A política é no dia-a-dia. É uma decisão de engajamento. Entender que as soluções só podem ser resolvidas coletivamente. No caso do clima, por exemplo, é muito comum as pessoas se preparem para um aquecimento iminente com a instalação de um ar condicionado. Mas se as pessoas de todo o edifício colocam ar condicionado, a energia cai. Ou seja, não é possível se adaptar à realidade complexa que temos agora, fora da política. Por isso é necessário um amadurecimento profundo por parte da sociedade brasileira que não está acostumada com a democracia, um exercício recente da sociedade brasileira. Um exercício árduo que se inicia com o voto, mas não termina com o voto. A democracia precisa se estabelecer no dia-a-dia, na cobrança às autoridades, na participação, no engajamento. Essa é a cultura política que precisamos no Brasil. E ela irá acontecer: nesta e nas próximas gerações.
Como comemorar, com esperança, este 11 de setembro, Dia do Cerrado?
Eu vivo em uma chácara, imerso no Cerrado, o bioma que me inspira profundamente com sua resiliência, sua capacidade de ressurgimento e de vencer as dificuldades onde ele está posto, que constrangem a sua existência. Os solos pouco férteis, o fogo, as intempéries. E ele nos inspira a termos uma resiliência interna muito grande, entendermos que, neste momento, precisamos nos fortalecer. A nossa sociedade precisa se inspirar nesse bioma que alimenta de água e de vida tantos outros biomas e nosso país como um todo. Nesse sentido, 11 de setembro, Dia do Cerrado, precisa ser um chamado à resistência até quando possamos celebrar vitórias para garantir as condições de vida do país.
Perfil do Entrevistado
Crédito: Agência Câmara
Cientista político e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília (UnB), com foco em diálogo intercultural e participação social. É ambientalista, consultor em governo e políticas públicas. Trabalha no terceiro setor com advocacy desde 2006. Integra o conselho de ONGs socioambientais e de direitos humanos. É diretor adjunto do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS). Foi supervisor de projetos do terceiro setor no Governo Federal, assessor legislativo na Câmara Legislativa do Distrito Federal e Administrador Regional pelo Governo do Distrito Federal.
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