top of page
Ana Lúcia Medeiros

Encontrar saídas é gesto dos bravos

Atualizado: 11 de out.

Alessandro Candeas, embaixador brasileiro na Palestina, mostra que o Brasil age com olhar humano sobre o massacre no mundo árabe, tem urgência em repatriar brasileiros e que, apesar da complexidade da situação, é possível encontrar saídas


Por Ana Lúcia Medeiros - exclusivo para o W3 Jornal




Alessandro Candeas, embaixador do Brasil na Palestina - Foto: acervo pessoal

A dor como fonte de inspiração poética. É esse o olhar que o embaixador brasileiro na Palestina, Alessandro Candeas, prefere lançar sobre a situação dramática que enfrentam as pessoas no mundo árabe, onde multiplicam-se pequenas Gazas, cresce significativamente o número de mortos e feridos, 1 ano após a fatídica ação do Hamas sobre civis em Israel. A inspiração de Candeas vem do escritor palestino Mahmoud Darwish, que exalta a beleza da escrita de parte dos sofridos, dos perdedores, e não dos vencedores.


Atento a essa triste realidade que acompanha de perto, Alessandro Candeas tem conhecimento da situação estrutural que envolve a complexa relação entre os mundos ocidental e oriental, mas se debruça sobre o lado humano que se opõe à opressão e à brutalidade desumana que, paradoxalmente, exacerba a sensibilidade que nasce da dor e se traduz na beleza da escrita poética dos sofridos, dos perdedores, e não dos vencedores, expressa na obra seminal de Mahmoud Darwish com argumentos de que, de alguma forma, a posição de dor produz melhor literatura e poesia.


Tendo o afeto como guia em suas ações, Alessandro Candeas traz, em entrevista exclusiva ao W3 Jornal, detalhes sobre a situação. Mostra, também, sua percepção sobre o conflito político entre a sensibilidade humana e a máquina, presente na obra Hybris – Inteligência artificial e a revanche, que escreveu em 2018, com reflexões sobre desafios como guerras, desinformação, “tecnodependência” e que traz uma mensagem de esperança para a segunda metade do século XXI.


Ver poesia onde só se pode enxergar sofrimento é, em si, uma singularidade a ser considerada em tempos complexos. Porque é preciso esperançar, como diria Paulo Freire, pernambucano tal qual Alessandro Candeas, e agir.


Os detalhes dessa conversa você confere a seguir. Boa leitura!


O mundo oriental enfrenta relações cada vez mais complexas com o mundo ocidental. Qual a sua leitura para esses desafios contemporâneos?


Essa questão é interessante e remete a dois conceitos: o de Orientalismo, proposto pelo escritor palestino Edward Said, e o de Choque de Civilizações, de Samuel Huntington. Ambos se situam em polos diferentes do ponto de vista ideológico na forma de ver o Ocidente, mas se aproximam de certa forma da crítica à interação dos mundos. O Orientalismo de Said é uma crítica a como o Ocidente se acredita superior, moral e intelectualmente, o cúmulo da civilização. E, por isso, olha o Oriente (no caso, o Levante) de cima para baixo, como bárbaros, inferiores etc. É uma visão racista, supremacista, etnocêntrica. Já a tese do choque de civilizações, pensado há 30 anos por Huntington, também parte da pretensa superioridade do Ocidente, ápice da civilização, mas ressalta, de forma pessimista em tempos de globalização liberal e pacifista, a competição que povos brancos, europeus, norte-americanos, passariam a sofrer dos novos bárbaros – os islâmicos, hinduístas, asiáticos e assim por diante. Os não-ocidentais seriam perigosos, ameaçadores, como bárbaros modernos contra a nova Roma, por assim dizer. Dessa forma, Edward Said e Huntington abordam a pretensa superioridade do Ocidente, mas de formas distintas. Said critica o modo como o Ocidente vê o Oriente, de forma estereotipada, preconceituosa, ao passo que Huntington exalta o Ocidente civilizado e assinala o perigo de choques com outras civilizações. Eu tendo mais a concordar com a tese de Said, por conhecer a complexidade do Levante e seu potencial de civilização (Huntington não menciona que quando os europeus eram bárbaros, o Levante já tinha um patamar de civilização altíssimo, com cultura, tecnologia, organização social e política muito desenvolvidos). A visão de Huntington parece mesmo etnocêntrica e supremacista, o que sempre é um perigo, além de ser incorreto em vários aspectos, inclusive históricos, arqueológicos, sociológicos e mesmo políticos. A base para esses choques seria sobretudo religiosa (a civilização judaico-cristã, supostamente superior, contra as do islã, do hinduísmo, do zoroastrismo, do budismo, do confucionismo). O século XXI poderia trazer uma nova era de compreensão, conhecimento e interação mútuos dessas formas ricas de diversificação da humanidade, mas infelizmente o que percebemos é que o progresso tecnológico, sobretudo das comunicações, não tem favorecido o diálogo intercultural, mas o empoderamento de convicções e tribos de pensamento próprias que se mantêm estridentes e surdas ao mesmo tempo: estridentes para proclamar suas verdades, e fechadas e surdas para o outro.


No mês de agosto último, a organização humanitária Médicos Sem Fronteiras fez um alerta de que a intensificação de incursões israelenses na Cisjordânia prejudicou o acesso da população das cidades de Tulkarm e Jenin a cuidados médicos. Um quadro que vem se apresentando há um ano, quando vítimas da invasão à Palestina enfrentaram, por exemplo, cirurgia sem sedativo. É possível vislumbrar algo diferente do que se vê na Palestina e na Cisjordânia para a população libanesa nos ataques recentes de Israel ao Líbano?


O que vemos, com grande preocupação, é a multiplicação de pequenas Gazas na Cisjordânia e, a depender da evolução do conflito com o Hezbollah, também no sul do Líbano. Atentados terroristas e respostas desproporcionais, que confrontam os princípios e normas de direito humanitário, como a distinção entre civis e combatentes, a proporcionalidade do uso da força e a precaução, para que os civis não sejam massacrados, como está acontecendo. Além disso, há destruição de infraestrutura, bloqueios para o ingresso de alimentos, água e ajuda humanitária, inclusive médica, como você mencionou. O que aconteceu em Gaza, com o saldo terrível de perdas humanas, pode se repetir, em escalas menores, mas multiplicadas, na Cisjordânia. Há o risco, portanto, de escalada da violência. As questões têm que ser resolvidas pela raiz, sua solução não é militar. E a raiz do problema é político: é necessário, como a grande maioria da comunidade internacional deseja, implementar a chamada "solução de dois Estados". Além do Estado de Israel, é necessário que os palestinos também tenham sua autodeterminação e se organizem em um Estado. Sufocar isso é um perigo permanente para a região, como a história dos últimos 70 anos tem demonstrado. É necessário que ambos, israelenses e palestinos, possam viver em paz e segurança, com fronteiras reconhecidas. Mas isso não acontece em um ambiente cada vez mais radicalizado e de extremismo como o atual. Isso precisa mudar, e rápido, para que não se atinja um ponto de não retorno.


As mortes de líderes do Hezbollah no Líbano, com apoio dos EUA (embora não tenham sido avisados das ações com antecedência), intensificaram as tensões. O Irã começa a reagir. Você vê perspectivas de um fim a tudo isso que se vê crescer no chamado Oriente Médio?


Como disse, é necessário resolver uma das raízes do problema, que é a "solução de dois Estados". Um Estado palestino que se constitua e possa conviver em paz e segurança com o Estado de Israel. Ambos os povos necessitam de paz, ninguém aguenta mais esses conflitos. Nos anos 1990, com o processo de Oslo, isso foi vislumbrado, mas infelizmente com o assassinato de Yitzhak Rabin, o processo de paz recebeu um golpe mortal e nunca mais pôde se reerguer. Pode notar que os ataques do Hamas, do Hezbollah e do Irã mencionam a questão palestina. Ela está no centro. Enquanto não for resolvida, haverá essa tensão.


O avanço da ultradireita no mundo ainda nos permite esperançar?


É importante que os direitos humanos sempre prevaleçam.


A Terra Santa vive tensões há 3 mil anos. Com esse histórico, como enxergar poesia nessa realidade cruel que o mundo árabe enfrenta?


Há muita poesia e literatura no mundo árabe. O meu poeta palestino preferido é Mahmoud Darwish. A opressão e a brutalidade produzem como efeitos colaterais tanto a brutalidade e a desumanização quanto, também, uma sensibilidade exacerbada, que nasce da dor. Esta se traduz em poesia. Em seu livro "A Palestina como Metáfora" (que na verdade é uma coleção de entrevistas e escritos), Darwish exalta a beleza da escrita de parte dos sofridos, dos perdedores, e não dos vencedores. Argumenta que, de alguma forma, a posição de dor produz melhor literatura e poesia. Quando li isso, lembrei-me de Eneida de Virgílio, uma das mais belas produções da literatura universal, um poema épico que narra o pós-guerra de Troia não a partir da narrativa dos vencedores gregos, mas dos perdedores: a visão de um troiano, Eneias, que escapa, percorre vários lugares e termina chegando na Península Itálica e lançando as raízes do que viria a ser, muitos séculos depois, uma nação vitoriosa - Roma.


Seguindo a máxima adotada pela diplomacia brasileira de que uma ação humanitária não se improvisa, você e sua equipe deram apoio, há um ano, às famílias palestinas registradas no Consulado. Agora, a incursão de Israel no Líbano matou dois adolescentes brasileiros. O que o Brasil vislumbra fazer pelas famílias brasileiras no Líbano?


Na Palestina, conseguimos felizmente evacuar 115 brasileiros durante a Guerra de Gaza, tanto desta Faixa quanto da Cisjordânia. Graças a Deus não houve morte de brasileiros na ocasião. Lamentamos e sentimos muito a perda desses jovens brasileiros no Líbano. Como disse acima, a magnitude do desafio é diferente. O Brasil já está repatriando nossos nacionais do Líbano, em uma operação coordenada por nossa embaixada em Beirute e com apoio da FAB.


Como embaixador do Brasil junto à Autoridade Palestina, o que é possível avaliar a partir do fatídico 7 de outubro de 2023 e as perspectivas para o povo palestino?


Há muita dor de ambos os lados, palestinos e israelenses. Essa guerra tornou a vida de todos muito pior do que há um ano. Tragédia humanitária, insegurança crescente, escalada de violência, risco de alastramento do conflito. O povo palestino deseja exercer sua autodeterminação e se constituir em um Estado autônomo. O Brasil defende a chamada "solução de dois Estados" (Israel e Palestina) convivendo em paz e segurança, com fronteiras reconhecidas e prosperidade para ambos. Infelizmente, entretanto, a realidade no terreno não permite otimismo no curto prazo.


No livro "História de uma ideia a partir da visão do outro" (2017), você observou as integrações entre Brasil e Argentina sob uma perspectiva humanista. A partir do perfil singular de Lula, seria possível pensar, hoje, uma articulação regional harmoniosa?


O livro é resultado de uma tese que fiz no Curso de Altos Estudos do Itamaraty. A América do Sul (e por extensão) a América Latina são a circunstância geográfica imediata do Brasil. Portanto, o país tem todo o interesse em contribuir para uma região de paz, prosperidade, cooperação, desenvolvimento. Essa é uma prioridade absoluta de nossa política externa, uma política de Estado, não somente de governo. Temos quase 17 mil km de fronteiras com dez países, e absolutamente nenhum conflito fronteiriço. Que outro país pode se dar ao luxo de ter uma geografia construída pela diplomacia e pelo reconhecimento do direito internacional? Essa foi a obra de Rio Branco. O Brasil deseja sempre ser um fator indutor de desenvolvimento, paz e segurança em seu entorno regional imediato. Por isso nossa diplomacia buscou estruturar o Mercosul, a CELAC, a Organização de Cooperação Amazônica e diversos outros mecanismos, além de contribuir fortemente com a ALADI, a OEA e outros foros regionais. As oscilações momentâneas das políticas internas dos países da região, inclusive a do Brasil, que tanto chamam a atenção da imprensa e da opinião pública, não devem cegar-nos para a maior conquista diplomática do país, que foi e continuará sendo buscar essa articulação regional harmoniosa à qual você se refere. Damos a isso instituições, regras, para que ela seja permanente e ajude ao desenvolvimento de todas as populações da região.


Na obra "Hybris – Inteligência artificial e a revanche" (2018), você pensa no conflito político entre a sensibilidade humana e a máquina. Diante de tantos desafios que o mundo enfrenta, como guerras, desinformação, “tecnodependência”, seria possível vislumbrar uma relação de equilíbrio entre homem e máquina nas próximas décadas?


Muito interessante essa pergunta, que inclusive coincide com a divulgação do Prêmio Nobel de Física este ano: dois cientistas da área de "machine learning" com redes neurais artificiais. Um trabalhou com memória associativa, e outro com autonomia para encontrar propriedades em dados. A inteligência artificial (IA) já está presente em nossa rotina de forma mais ubíqua do que percebemos, e será em poucos anos integrada em praticamente todas as nossas atividades. Os sistemas operacionais inteligentes estão cada vez mais sofisticados, com uma curva de aprendizado exponencial. Como tudo na vida, há o bem e o mal. A Inteligência Artificial pode ser extremamente útil no aprendizado, na eficiência dos sistemas, na segurança, no monitoramento, na pesquisa e assim por diante. Por outro lado, se os usuários a utilizarem para destruir e fazer o mal, ou simplesmente abandonarem sua rotina e suas decisões – por comodidade ou preguiça, por exemplo – nas mãos das recomendações dos sistemas inteligentes, deixando de pensar, exercer o senso crítico e não assumir a responsabilidade pelas próprias decisões, estaremos entregando muito de nosso destino àqueles sistemas. A prosopopeia é estimulante, mas de alguma forma a IA nasce de uma extensão da inteligência humana. Portanto, não se deve descartar alguma forma de personificação de suas ações. O problema é o chamado "controle humano significativo". Os operadores ou usuários vão continuar no controle, ou se acomodarão a ser apenas um elo na longa cadeia decisória armada pelo sistema inteligente? Queremos continuar tomando decisões e nos responsabilizando por elas, ou vamos – de novo a prosopopeia – entregar nas mãos de máquinas inteligentes a condução de áreas cada vez mais amplas de nossas vidas pessoais (escolhas) e da sociedade? O que nos torna humanos? Clicar em algumas figuras para provar que somos, para que o sistema verifique e nos dê acesso a seus serviços? Ou manteremos limites decisórios diante da expansão de sistemas que aprendem a uma velocidade descomunal?


Outro dia li que um sistema modificou sua própria programação e seus parâmetros para contornar os limites que os programadores haviam imposto. Essa relação de desequilíbrio à qual sua pergunta se refere é uma relação de poder. Se os programadores, as empresas, os governos e os consumidores não estabelecerem um limite e entregarem maiores possibilidades de definição e decisão para os sistemas inteligentes, os seres humanos estarão perdendo poder, literalmente, diante de máquinas pensantes. O resultado pode ser muito perigoso, se chegado a um ponto de não retorno nessa relação. O livro Hybris discute justamente essa distopia, e nessa queda de braço (ou de algoritmos), entre o ultrarracionalismo das máquinas conscientes e a sensibilidade humana, o que sobrou foi o poderosíssimo inconsciente, que tem a última palavra na história (o spoiler é intencional).


Perfil do entrevistado



Pernambucano, diplomata de carreira, Alessandro Candeas é embaixador do Brasil junto à Autoridade Palestina. Doutor em socioeconomia do desenvolvimento pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris (2002). Tem experiência profissional e acadêmica nas áreas de Relações Internacionais, Defesa, Direito Internacional e Educação.


Autor de diversos livros, entre os quais, Hybris – Inteligência artificial e a revanche (2018); História de uma ideia a partir da visão do outro (2017); Trópico, Cultura e Desenvolvimento: a reflexão da UNESCO e a tropicologia de Gilberto Freyre (2010). Publicou também vários artigos acadêmicos.





255 visualizações6 comentários

Posts recentes

Ver tudo

6 Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
Guest
Oct 11

É muito triste. Sim, paz é o que queremos. Fim ao massacre contra pessoas inocentes. Ns consola ver o Brasil representado por um embaixador tão humano. Isso nos traz esperança.

Like

Guest
Oct 11

A entrevista é ótima, mas o que precisamos é de paz ! Infelizmente como meu avô Pichara, veio procurar a paz e trabalho, muitos Libaneses fizeram o mesmo! Tenho pena de nossa gente sofrida, o que posso fazer é pedir a Espiritualidade para estar no coração de todos os que estão sofrendo, trazendo paz e amor!🩷🙏🏽🧚🏼‍♂️

Like

Guest
Oct 11

Excelente entrevista. O embaixador Alessandro Candéas acredita que a paz seja possível através de decisões diplomáticas e humanitárias. Parabéns pela aula recebida

Like

Guest
Oct 10
Rated 5 out of 5 stars.

Obrigada por essa entrevista lúcida e pertinente com um personagem tão singular como o embaixador Candeas. E quando o texto instiga, a gente quer saber mais. Fui buscar sobre o poeta mencionado Mahmoud Darwish. Fascinante!

Edited
Like

Guest
Oct 10

A paz é possível, basta ter coragem. A guerra contra civis e indefesos é coisa de covardes. Bela entrevista.

Edited
Like
bottom of page