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Beto Seabra

Brasília vê cena musical crescer, mas faltam espaços

Atualizado: 25 de ago.

Texto de Beto Seabra


Uma cidade, qualquer cidade, precisa de sua cultura para viver. Vimos isso durante a pandemia, quando os artistas locais ocuparam as redes e as ruas (com máscaras e distanciamento) para entreter as pessoas e as fazerem continuar sonhando, apesar de tudo o que acontecia.


O Distrito Federal tem uma vocação cultural forte, não apenas por sediar a capital da República, mas também em razão de sua diversidade – aqui vivem pessoas dos 26 estados e de mais de uma centena de países, além dos candangos e brasilienses nativos, que já são maioria. E, dentro desse caldo cultural aqui formado, a música se destaca.


Nos anos 1960 e 1970 fomos a nova capital que recebeu grandes músicos e viu surgir aqui o Clube do Choro e inúmeras rodas de chorões. E também a capital do Rock e o lugar onde o reggae reuniu e ainda reúne dezenas de bandas. Sem contar o samba do Cruzeiro, os forrós da Ceilândia e o rap em todas as quebradas. A Escola de Música e a Universidade de Brasília, lugares de onde saem anualmente dezenas de músicos e musicistas de todos os gêneros musicais, do clássico ao popular, finalmente deram ao DF o contorno teórico e institucional que a música precisa para florescer.     


A vez do jazz


De uns anos para cá, a cidade vem se firmando como um celeiro de músicos de jazz, esse gênero norte-americano que virou sinônimo da música instrumental e do improviso de todos os tipos de sons.


Mas, ao mesmo tempo em que vivemos toda essa efervescência musical, temos também um dos piores cenários políticos em mais de sessenta anos da história cultural de Brasília. O Governo do Distrito Federal abandonou as políticas culturais setoriais e a famigerada Lei do Silêncio (Lei Distrital 4.092, de 2008), criada para evitar abusos e garantir a sanidade dos moradores, virou um instrumento autoritário que pune os músicos e casas comerciais e livra os verdadeiros poluidores sonoros.


O maestro Rênio Quintas, carioca que se mudou para cá em 1960, concorda que Brasília vive um momento único, para o bem e para o mal.


“É uma cena muito efervescente e muito rica. Há uma galera em plena criação. Está havendo um boom de grandes autores e compositores. Mas, infelizmente, a estrutura da cidade não está acompanhando, porque nós estamos sitiados pela Lei do Silêncio”, disse o músico.


 Segundo ele, a lei foi responsável pelo fechamento de 25 casas nos últimos 5 anos. “É um absurdo completo. Uma hecatombe de casas noturnas sendo fechadas. Hoje nós temos duas casas que resistem, mas que são genéricas, que não são exclusivamente jazzísticas”, disse, se referindo ao Infinu (506 Sul) e à Galeria Mundo Vivo (413 Norte).


Para Rênio, essa lei precisa ser revisada. “Ela não pode ser extinta porque existem os direitos dos que querem descansar e isso a gente tem que compreender. Mas ela não pode ser um inibidor de trabalho. E esta lei está servindo pra isso. Ontem eu fiz um show na Biblioteca Demonstrativa – espero que outros lugares abram espaços como aquele – para gente poder fazer uma música instrumental de qualidade que é a cara de Brasília”.



Desenho de Paulo Andrade, artista de Brasília, da série de aquarelas Jazz

Música virou crime?


Juliana de Andrade, coordenadora da Praça dos Prazeres e integrante do movimento Quem Desligou o Som, concorda com esse ponto de vista.


“Brasília e as 35 cidades do DF mantém a trajetória de excelentes profissionais da música, diversidade imensa de talentos. O que ocorre é que foram destruídos os setoriais da Cultura. Não temos mais políticas setoriais. A Música poderia ter uma agência, como o cinema tem, por exemplo. Temos apenas uma Escola de Música no DF, com muitas fragilidades. Quanto ao acesso à música o que temos é uma política pública pontual. Temos eventos de fim de semana, sazonais, que recebem muito recurso público e ainda cobram ingresso para o público acessar”, disse Juliana.


Ela também criticou a Lei do Silêncio. “Temos o mecanismo da Lei do Silêncio, que agiu de forma arbitrária e higienista na cidade. Este mecanismo considera música crime ambiental. Nós DJs, produtores, empreendedores, músicos somos os criminosos ambientais. Inclusive, os festejos populares, como o Carnaval, têm sido tratados desta forma”.


Juliana de Andrade acredita que, ao mesmo tempo em que temos muitos bons músicos no DF, o nosso sistema de fomento cultural é ineficiente e arbitrário, beneficiando um grupo específico de manifestações e interesses, inclusive eleitoreiros. “Já as iniciativas duradouras, autônomas e genuínas são criminalizadas e perseguidas”, disse ela.


Ela criticou também a “privatização limitante” dos equipamentos culturais via MRosc (o marco regulatório das organizações da sociedade civil). Para ela, a lei tem sido usada de forma abusiva pela atual gestão para impedir a efetiva execução de políticas publicas.


“Temos planos distrital e nacional de Cultura a cumprir. Precisamos pactuar a fluidez das ações do setorial de música que dentro da sua diversidade é das maiores riquezas do povo brasileiro”, disse Juliana.


Ela denuncia que, mesmo a capital sendo uma cidade tombada e patrimônio da humanidade, não tem uma política pública para cultura urbana e noturna. “Brasília é uma cidade de vanguarda, que poderia também desenvolver políticas para a cultura noturna, urbana, para movimentar economicamente a cidade. Inclusive promovendo afetos e encontros. Mas, infelizmente, a prioridade política não tem sido essa”, disse.

 

Sem saudosismo, mas com certa saudade, Rênio Quintas lembra que Brasília já teve uma cena musical mais generosa.


“Eu vivi a década de noventa. Final da década de oitenta e começo da década de noventa, com Artmanhas, Instrumental e Tal, O Marco Pereira Trio e muitos outros. E havia lugar para a gente tocar. Havia mais de 30 casas para escolher. Tocava em clubes também. Hoje a efervescência existe, pois Brasília é um celeiro cultural de grandes músicos, mas a estrutura da cidade não acompanha e as políticas públicas do governo não existem. É preciso resolver essa equação para essa cena virtuosa deslanchar cada vez mais”, concluiu o maestro Rênio Quintas.



Aquarela da série Jazz, do artista Paulo Andrade

“Tocar música instrumental em Brasília é um ato de rebeldia”, diz radialista


O radialista Mario Sartô, integrante do Coletivo Superjazz, chegou a Brasília em 2011 e se surpreendeu com a quantidade enorme de músicos maravilhosos na cidade. E, aos poucos, ele foi conhecendo a história da música na cidade, da tradição, muito por conta do choro, da Escola de Choro Rafael Rabello, e por conta da Escola de Música de Brasília.


“São três celeiros: Departamento de Música da UnB, Escola de Música de Brasília, que é uma escola pública, e isso é fundamental, é um privilégio ter uma política de educação para a música, e a Escola de Choro Rafael Rabello. São três polos incríveis de formação e desenvolvimento de músicos nessa área. Músicos, arranjadores e compositores”, explica Sartô.


Ele diz que, de um tempo para cá, todo mundo vem falando que a música instrumental, o jazz, virou coisa de restaurante chique, para ficar de música de fundo. “Isso é uma característica que o jazz toma às vezes. Só que o músico ele é muito mal pago, mesmo que toque em uma casa em que as pessoas paguem muito caro para estar lá”, disse.


O resultado, diz Sartô, é que temos uma produção musical maravilhosa, pois a cada dia surgem novos artistas, arranjadores, compositores, uma novíssima geração que está chegando aí, no entanto, temos pouquíssimos espaços na cidade voltados para isso.

Desse incômodo, diz Sartô, foi que surgiu o Coletivo Super Jazz.


“Criamos essa iniciativa de irmos para o Eixão do Lazer aos domingos. Isso começou em 2023 e prossegue em 2024. E a proposta é justamente levar para a rua e mostrar que o jazz é uma música que vem da periferia, uma música negra que nasceu na periferia, nos Estados Unidos, mas o jazz necessariamente ele não é norte-americano. Ele apenas lá ganhou esse nome, mas o jazz ele é uma forma de se tocar, onde a improvisação é uma característica principal. Por isso que o jazz está no mundo inteiro. O jazz ele se adequa a todos os estilos e vertentes musicais. Ele acolhe a todos. Você tem o samba-jazz, tem o funk jazz, o hip-hop jazz, você tem diversos estilos e gêneros musicais que se adequam ao jazz. Por isso o nosso slogan é ‘jazz é amor’. Que é justamente isso, o jazz ele acolhe a todos”, completa Sartô.


Ele concorda que a Lei do Silêncio, citada por Rênio Quintas e Juliana de Andrade, é um grande empecilho para a música na cidade.


“Nós do coletivo Super Jazz temos procurado justamente juntar essas pessoas todas que estão produzindo e dar muito espaço para essa nova geração. Que realmente não tem nenhum lugar para tocar. São pouquíssimos palcos. E as dificuldades são sempre grandes, como a questão da Lei do Silêncio, não só para a música instrumental, para toda a arte e cultura do DF. A Lei do Silêncio é um grande empecilho para que se tenha espaços para tocar. Muita gente teve que fechar seus estabelecimentos porque tomaram multa por estar tocando um trio de música instrumental”, disse.


Mario Sartô critica também a falta de uma política cultural específica para a música da cidade.


“Tirando o FAC (Fundo de Apoio à Cultura), você não tem uma proposta mais específica de fomento. E nós, particularmente, sofremos muito no Eixão do Lazer, aos domingos, com o DER (Departamento de Estradas de Rodagem do Distrito Federal), com a questão de conseguir alvará, de conseguir autorização, então é sempre ameaça, é sempre dizendo que não pode, além da própria Lei do Silêncio, porque o pessoal do IBRAM (Instituto Brasília Ambiental) passa lá também. Então são vários fatores que fazem com que as pessoas que estão trabalhando hoje nesse segmento são verdadeiros rebeldes, verdadeiros guerreiros”, disse Sartô.


Documentário


Essa rebeldia levou esse grupo a decidir por fazer um documentário sobre a cena do jazz em Brasília.


“Estamos captando depoimentos para um documentário, que vai se chamar Rebeldes do Jazz. Porque hoje você tocar música instrumental, tocar jazz e tal é um ato de rebeldia. Porque você não é reconhecido pelo mercado, não toca em rádio, a mídia não dá praticamente apoio, você não tem local de trabalho, as pessoas não valorizam o seu cachê”, desabafa Sartô.


A ideia do documentário que está sendo produzido pelo coletivo Super Jazz é mostrar para a sociedade que existem pessoas, que estão aí, na contramão de tudo, que estudam muito, dedicam boa parte de suas vidas estudando, pesquisando, e não têm onde mostrar sua arte. Ou os espaços são bem restritos, como os já citados Galeria Mundo Livre e, Infinu.


Mario Sartô cita uma experiência exitosa que demonstrou que Brasília tem público para essa música instrumental.


“Tivemos uma experiência agora com o Festival Super Jazz, no CCBB (Centro Cultural do Banco do Brasil), que foram sete quartas-feiras, todas lotadas de gente. A média de público foi de 1.200 pessoas, chegando ao pico de termos 2.200 pessoas numa quarta-feira para ouvir jazz!”, comemora Sartô.


Público tem. O que falta é espaço


“Músicos e artistas têm de sobra nessa cidade, o que falta é o quê? É espaço. Se você tem quem produz e tem quem ouve né? A gente vê o Choro no Eixo, onde muita gente vai para lá ouvir choro. Lá no Eixão do Jazz a gente tem um público cativo, tem um público que vai lá todo domingo pra ouvir os grupos que a gente leva pra lá e faz essa comunhão naquele gramado lindo do Eixão. Então o que está faltado realmente é uma política pública eficaz que possa abrir espaço, que possa fomentar e casas que possam trabalhar também porque muitas pessoas tentam, tentaram e não conseguiram continuar”, finalizou Sartô.  


Ele citou ainda o Buraco do Jazz, que acontece lá na Praça dos Três Poderes, um projeto já mais antigo e que também tem seu público. “Mas sempre no limiar da não autorização, das ilegalidades. A gente que produz evento parece que a gente está sempre no limiar da ilegalidade. E por isso somos todos rebeldes do Jazz”, disse.





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