Texto de Márcia Marques*
A cachoeira cantando
é a canção natural
sempre lembrando pra gente
que amar nunca faz mal
(Cebola Cortada – Clodo e Petrúcio Maia)
A tela do celular acendeu e mostrou a mensagem dolorosamente curta enviada pelo Paulo José Cunha: “o Clodo morreu”. Há meses, Clodo vinha declinando de convites, sob o pretexto de que se preparava para uma “viagem próxima”. Para fechar a bagagem, lançou um disco e concluiu um livro, símbolos de maturidade criativa e intelectual. Ao receber a notícia, além da reação instintiva de ouvir a música de Clodo, especialmente “Cebola cortada”, do disco São Piauí, passei a organizar a história de nossa relação na Universidade de Brasília. Muito deste tempo ainda está fresco na memória, pois participei com a escrita de um capítulo do livro concluído, mas ainda não editado, que ele deixou. Vamos ao começo.
Por concurso público, em setembro de 1997, tornei-me professora do jornal-laboratório Campus da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Foi por esta época que Paulo José também se tornou professor da FAC e eu descobri que ali estava instalada, sem muito alarde, a República do Piauí: além do PJ, Lavina Madeira Ribeiro, José Fonseca Ferreira, Dácia Ibiapina e os irmãos Clodo e Clésio Ferreira. Uma república de altíssimo nível.
No início de 1998, Clodo, que era professor do DAP, o Departamento de Audiovisual e Publicidade, apresentou uma proposta ao nosso laboratório: abrir espaço em nossas páginas – o jornal tinha cinco edições semestrais, cada uma com tiragem de quatro mil exemplares – para a turma de publicidade criar anúncios de serviços sobre a universidade, sem ser chapa branca. Não fizemos a parceria por muito tempo. Clodo, que havia defendido o mestrado havia poucos anos, mergulhou em um projeto com o ex-reitor da UnB, Antonio Ibañez, na Secretaria de Educação do Governo do Distrito Federal.
A vivência com as ideias de Paulo Freire serviu de base para o projeto Educação tamanho Família, a partir de 1996, que contou com a colaboração do jornalista Beto Seabra, assessor de Comunicação do GDF. Envolvia a produção de programas de TV com o tratamento de temas polêmicos que estão presentes no dia a dia da escola. Também eram promovidos encontros entre pais, professores e especialistas para esclarecer dúvidas sobre o assunto e também sobre a abordagem em sala de aula. Os temas polêmicos, claro, são os de sempre: sexualidade, gravidez precoce, drogas, evasão escolar, reprovação, segurança pública, saúde da criança e do adolescente.
No início dos anos 2000, Clodo esteve muito ocupado com a criação de um laboratório para o curso de publicidade, pensado a partir de uma proposta pedagógica, em que a autonomia e a criticidade eram palavras-chave. Dia 1º de agosto deste ano de 2024 o laboratório de Publicidade completa 20 anos. As homenagens ao principal elaborador do projeto estavam prontas quando a notícia da morte de Clodo ocupou as redes – de forma inexpressiva pelos jornais locais, que não têm mais seção de cultura, mas de entretenimento. Clodo havia declinado de convite para participar da festa, por conta da “viagem próxima”. A negativa para aparições públicas contrasta com a intensa atividade do autor da música “Revelação”, que embalou muitas gerações. Aliás, o álbum São Piauí inspirou a cantora Nara Leão a criar a canção “Cli Clé, Clô”, uma das poucas composições da musa da Bossa Nova.
Um dia vestido de saudade viva
Faz ressuscitar
Casas mal vividas, camas repartidas
Faz se revelar
(trecho de Revelação, música de Clésio e Clodo Ferreira)
Em maio passado, Rique Reis, vocalista do MPB4 e crítico de música brasileira, fez um artigo de elogio rasgado ao recém-lançado “Constelação de palavras”, que classificou como surpreendente. Na abertura do artigo, lembra que gravou música do Clodo e diz que desconfiou que pudesse ser bom o conjunto voz e violão e se encanta: “Eu ouvia e a cantiga, tão bela, me pegava de jeito… emocionei. A danada tem como título “Tempo Bom”. Àquela altura, Clodo tocava violão como um… Baden Powell, e cantava, e eu ouvia como se ele fosse um Cauby Peixoto, ah, sei lá “
Mas não se engane
Não acredite que o mundo está ruindo
Pense somente que a vida está fluindo
Só que você não sabe onde vai parar
(Clodo - Tempo bom)
Ao organizar o acervo que iria generosamente nos deixar, Clodo continuou a produzir coisas ligadas às suas paixões. Além de lançar o disco Constelação de palavras, Clodo concluiu o livro em que conta a experiência pedagógica de coordenar um projeto de mudança do currículo da Faculdade de Comunicação a partir de reuniões livres para discutir um livrinho, que custou R$ 5,00, de um autor visto apenas como ligado à alfabetização primária: Paulo Freire.
Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa é um livro que discute a relação ensinar/aprender para a autonomia, de maneira crítica, democrática e foi o fio condutor da primeira etapa do planejado por Clodo, que sempre tinha um exemplar em mãos para nos dar e também para convidar para os encontros pedagógicos. No segundo estágio, a leitura foi de Os sete saberes para a educação do futuro, de Edgar Morin, autor da teoria da Complexidade. Eu estava voltando do mestrado, as reuniões me fisgaram e a vários colegas, também.
Professores, estudantes, servidores técnicos, cada categoria formou um grupo de discussão dos temas sugeridos para o debate pedagógico. Alguns encontros foram particularmente marcantes, como aquele em que discutíamos a questão da avaliação, sempre momento de sofrimento para docente e discente, e a professora Rosângela Rocha resumiu o coração do problema: a ferida narcísica. Clodo, com esta ação pedagógica tão freireana me tornou professora, que sabe que ensina e aprende, e não mais apenas alguém que sabia muito sobre como fazer jornal, pela experiência de 17 anos em redações antes de vir para a universidade.
Clodo desenvolveu esta dinâmica coletiva, que resultou na criação de um novo currículo para a FAC, ao mesmo tempo em que concluía o doutoramento, em 2008. Nos dois níveis de pós-graduação, ele uniu dois amores: a pesquisa acadêmica e a música independente.
Mestre no campo da Comunicação, fez um estudo de caso a partir da observação da produção dos grupos musicais locais Liga-Tripa e Invoquei o Vocal e a dupla Advogado e Engenheiro, que resultou na dissertação “Uma gota: assim a chuva começa - estudo de caso da produção de discos independentes em Brasília”, defendida em 1994.
No doutorado, de 2004 a 2008, que empreendeu no campo da História, aprofundou a pesquisa anterior na tese “Impressões digitais da (in)dependência: os CDs (in)dependentes em Brasília (1990 a 2007)”, em que mapeia a produção (in) dependente no DF, desde o projeto Cabeças, que agitou o Distrito Federal na década de 1990, até o hip hop de Ceilândia, na perspectiva de GOG, um dos expoentes da cultura da periferia. Clodo faz um trabalho delicado de oitiva desses produtores de cultura, muitas vezes excluídos do circuito comercial.
Professor de publicidade, especialmente de criatividade, Clodo levou a música para sala de aula, em uma disciplina optativa – não há obrigatoriedade de cursar – que por mais de uma década reuniu 50 estudantes em sala a cada semestre. As aulas foram transformadas no livro Comunicação e Música, mas depois que ele se aposentou, ninguém mais ousou oferecê-la novamente.
No velório de Clodo, encontrei Paulo José Cunha. Nos abraçamos e a primeira coisa que ele me disse foi: ele também te deu aquele livrinho maravilhoso do Paulo Freire?
*Márcia Marques é jornalista, pesquisadora e professora da Universidade de Brasília (UnB).
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