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Ana Lúcia Medeiros

A mentira faz parte do jogo político

Atualizado: 27 de out.

A difusão de conteúdos controversos ou falsos não é algo novo. Mas ela se intensifica com as redes sociais digitais. Esses movimentos ganharam força a partir das eleições presidenciais de 2016 nos Estados Unidos.  A boa notícia é que é possível verificar se um conteúdo é falso ou verdadeiro


Por Ana Lúcia Medeiros


Cada vez mais, as pessoas estão expostas a conteúdos que podem ou não ser verdadeiros nas redes sociais, espaços de sociabilidade técnica que permitem a qualquer usuário de ferramentas digitais publicar conteúdos que não passaram por um filtro ou um critério capaz de qualificá-los. O contexto é complexo, especialmente com a popularização da Inteligência Artificial. Como agir para encontrar um referencial de confiança? Em entrevista exclusiva concedida ao W3 Jornal, a jornalista e professora Cecília Almeida mostra como verificar a veracidade de conteúdos; descreve o que diferencia fake news e “desinformação” e, citando a filósofa Hannah Arendt, lembra que a mentira sempre fez parte do jogo político, o que muda é a amplificação desse conteúdo.


Confira os detalhes na entrevista com Cecília Almeida.

Boa leitura!


Foto: Agência Senado


Há muito tempo você se dedica aos estudos da circulação de controvérsias em redes sociais. Como você enxerga esse fenômeno nos dias atuais?

 

Existem muitas questões envolvidas nos fenômenos das redes sociais digitais, que vão desde sua natureza ambígua, no que diz respeito às fronteiras entre público e privado, até a maneira como a arquitetura operacional de cada uma dessas plataformas é construída, e como seus algoritmos favorecem a circulação (e subsequente popularidade) de determinados conteúdos em detrimento de outros. A circulação de controvérsias, de conteúdos difamatórios e sensacionalistas ou de mentiras não é algo novo, ou que tenha surgido a partir das redes sociais digitais. Porém, esses espaços de sociabilidade técnica permitem que qualquer usuário de ferramentas digitais possa tornar amplamente públicos conteúdos que não passaram por um filtro ou um critério capaz de qualificá-los. Quando abrimos nosso feed em um desses aplicativos de rede social, somos expostos a informações provenientes de toda a sorte de fonte, independentemente do grau de credibilidade ou confiança que esta tenha. Conteúdos controversos ou deliberadamente falsos costumam chamar muita atenção nas redes, o que amplia seu potencial de escalabilidade e circulação. Também devido aos algoritmos dessas plataformas, a tendência é que um conteúdo “curtido” ou clicado atraia outro semelhante, o que pode acabar limitando nossa experiência com o contraditório, viciando nosso modo de consumo da informação. Novamente, isso não é algo novo: mesmo no contexto das mídias massivas analógicas, como jornais impressos ou televisão, nossa tendência de procurar e selecionar conteúdos que sejam de nosso interesse já era uma característica de consumo de informação. No entanto, nesses ambientes há uma nitidez maior na identificação da fonte que produziu e disseminou um determinado conteúdo, de modo que ela pode ser mais facilmente responsabilizada. Nas redes sociais, esse elemento pode ser ocultado ou dissimulado, com o aparecimento e desaparecimento constante de perfis publicadores de informação, sem que se tenha nitidez em relação a quem de fato é responsável por aquele conteúdo. Com o surgimento e popularização de ferramentas de Inteligência Artificial, cada vez mais acessíveis ao grande público, isso se torna ainda mais complexo, pois há dificuldades crescentes de identificar, inclusive, se o conteúdo foi ou não gerado por um ser humano. Esses atores, somados às dinâmicas das redes, tornam cada vez mais complexa a nossa relação com a informação e com conteúdos de modo geral.

 

O que diferencia fake news e desinformação?

 

O termo fake news surgiu num contexto bastante específico, numa tentativa de um candidato à presidência dos Estados Unidos de questionar e descredibilizar as informações publicadas pela imprensa tradicional. Em si mesmo, a expressão já é paradoxal – se algo é “notícia”, teoricamente não poderia ser “falso”. De todo modo, o termo acabou sendo adotado pelo senso comum para falar de conteúdos mentirosos e fabricados, com o intuito de prejudicar pessoas e/ou influenciar a opinião pública em seus processos de tomada de decisão política. Ou seja, fake news são elementos de instrumentalização e organização da mentira num contexto de produção que busca afetar a opinião e o espaço públicos. Porém, muitos conteúdos que desinformam a população não são completamente falsos ou fabricados, e por vezes sua circulação também não se dá de modo deliberado ou orquestrado. Muitas vezes (ou talvez na maior parte das vezes), o conteúdo enganoso parte de uma informação factual verdadeira, porém que tirada de contexto, ou que foi de alguma forma manipulada para induzir a uma conclusão equivocada. Por todos esses motivos, o termo “desinformação”, por ser mais amplo, é mais apropriado para dar conta da complexidade do fenômeno e das várias maneiras como ele pode se manifestar.

 

Qual a contribuição da filósofa Hannah Arendt para compreendermos o papel da mentira na política?

 

A filósofa Hannah Arendt nos lembra que a mentira sempre fez parte do jogo político. O problema da mentira na política torna-se ainda mais grave quando ela deixa de ser usada como estratégia pontual para abranger um contexto mais amplo, ganhando peso ao ponto de possibilitar uma reescrita do presente e do passado (por exemplo, no caso das narrativas que negam a existência do Holocausto ou de que houve uma ditadura militar aqui no Brasil). Quando não se tem um referencial de confiança que permita à opinião pública distinguir a verdade factual da ficção, o próprio tecido do espaço público é corroído, de modo que o debate democrático fica impossibilitado. “[...] o resultado de uma substituição coerente e total da verdade dos fatos por mentiras não é passarem estas a ser aceitas como verdade, e a verdade ser difamada como mentira, porém um processo de destruição do sentido mediante o qual nos orientamos no mundo real” (Arendt, 2007).

 

O universo digital permite a sofisticação da mentira no jogo político. Diante das dinâmicas próprias da internet, podemos vislumbrar algum tipo de controle para essa situação?

 

É muito difícil falar em controle da situação quando colocamos em jogo todos os interesses envolvidos nesse fenômeno. De um lado, há o interesse dos atores que produzem os conteúdos desinformativos. De outro, o interesse das plataformas de mídias sociais, que são empresas privadas e que exercem uma grande influência na maneira como consumimos informação. Há também os interesses dos governos, dos políticos, das instituições que fazem as nações se manterem em funcionamento no contexto de uma democracia. Este conjunto de interesses nem sempre vão ao encontro dos interesses da parte mais diretamente prejudicada, que é a sociedade civil. Assim, hoje vemos tentativas de discutir esses fenômenos em todos esses âmbitos, com projetos de lei que preveem a regulação das redes ou a penalização de pessoas que financiam, produzem e ampliam a circulação de conteúdos mentirosos, porém ainda é muito difícil falar em “controle”.

 

Apesar de muitas pessoas terem consciência de que mentiras circulam no ambiente digital, o fenômeno da desinformação ainda pode influenciar os rumos das eleições em países como o Brasil e os Estados Unidos?

 

Sim, embora não se tenha como dimensionar exatamente o quanto esses processos têm influenciado a opinião pública. A consciência de que mentiras circulam no ambiente digital infelizmente não é suficiente para que o(a) usuário(a) seja capaz de identificar uma mentira, e menos ainda de aceitar que algum conteúdo que ele(a) acredita seja mentiroso. A desconfiança nas instituições, além de processos subjetivos de construção de crenças, faz com que mentiras muitas vezes tornem-se mais aceitáveis ou confortáveis do que verdades.

 

Que referencial de confiança as pessoas têm hoje para identificar o que é mentira e o que é verdadeiro?

 

O consumo de informações factuais é atravessado por um referencial de confiança que é construído de forma subjetiva pelo próprio sujeito/consumidor de informação. Ou seja, os ambientes em que buscamos as informações, de modo geral, são aqueles nos quais confiamos. No contexto das plataformas de redes sociais, e de aplicativos de mensagens como WhatsApp e Telegram, esses ambientes geralmente estão povoados por pessoas com quem guardamos relação afetiva – familiares, amigos etc – o que normalmente aumenta nossa predisposição em acreditar nesses materiais. Nesse sentido, quando a mensagem vem de uma pessoa que respeitamos ou em quem confiamos, é mais fácil sermos induzidos ao erro e nos deixar enganar por um conteúdo falso, ainda mais quando levamos em consideração o contexto de formação de câmaras de eco (em que nos aproximamos apenas de pessoas e conteúdos que reforcem nossa visão de mundo) e de aspectos subjetivos de construção de crença. É importante investir em iniciativas que desde cedo eduquem os usuários a identificar marcas de manipulação ou descontextualização de conteúdos, de modo a formar sujeitos críticos também no que diz respeito ao consumo de notícias.

                                                                      

O governo federal tem investido em propagadas criativas com aproximação das culturas regionais do Brasil. O Ministério da Saúde tem feito isso com informações sobre os programas de vacinação e a Justiça Eleitoral criou interessantes filmes educativos nas eleições 2024.  Iniciativas que guardam semelhanças com o programa “Coronavírus em Xeque”, transmitido pela Rádio Paulo Freire, no Recife, durante a pandemia. Você fez parte da equipe. Seriam esses modelos uma tendência que o poder público abraça no enfrentamento à desinformação?

 

Acredito que iniciativas de educação midiática sejam uma das principais frentes de combate à desinformação, para além das medidas legislativas e jurídicas. Isso em todos os níveis da educação, e também tanto nos ambientes de educação formal como não formal. Nesse sentido, o poder público e instituições de produção de saber têm um papel central na produção de conteúdos educativos e tradução destes para que eles alcancem públicos mais vulneráveis. Não basta tão somente sistematizar esses materiais, mas produzi-los com uma linguagem adequada aos diversos públicos que se pretende atingir com essas iniciativas.

 

Que sugestões práticas você aponta para que as pessoas consigam identificar uma informação confiável de uma mentira, especialmente em ambientes como o Whatsapp, tão utilizado no Brasil?

 

Uma das primeiras sugestões é pesquisar pela informação duvidosa em buscadores como Google. Geralmente, boatos e informações falsas com muita circulação já foram verificados por agências de checagens de fatos ou jornais, e esses resultados costumam aparecer logo no início da busca. É bem importante resistir à tentação de compartilhar antes de confirmar se aquela informação é verdadeira, não importa quem tenha enviado ou de onde ela pareça ter vindo. Muitos propagadores de conteúdos falsos usam o nome ou a identidade visual de instituições confiáveis para disfarçar o conteúdo enganoso, então mesmo mensagens supostamente “assinadas” por pessoas de credibilidade precisam ser verificadas. Deve-se desconfiar especialmente daqueles textões de WhatsApp com muitas frases apelativas, em caps lock / caixa alta, erros de português, mesmo quando parecem ter sido assinados por uma instituição de confiança. Muito provavelmente esses conteúdos foram produzidos na intenção de direcionar a opinião pública.


Cecília Almeida Foto: acervo pessoal

Perfil da Entrevistada


Cecília Almeida é jornalista, professora da Universidade Federal de Pernambuco. Autora do livro Telenovela transmídia na Rede Globo: O papel das controvérsias (2018).  Integrante do grupo que levou ao ar, na Rádio Paulo Freire, o programa Coronavírus em Xeque, com importante papel contra a desinformação durante a pandemia da Covid-19.

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3 Comments

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Guest
Oct 28
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O Congresso precisa aprovar logo o projeto que criminaliza as fakenews. Nessa eleição estamos vendo candidatos e pessoas em altos cargos, como o governador de São Paulo, espalhando mentiras. Sem punição, isso vai colocar em risco a própria democracia.

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Guest
Oct 26
Rated 5 out of 5 stars.

É mesmo muito importante mostrar como funciona esse sistema tão danoso à sociedade.

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Guest
Oct 28
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Sem chances do congresso aprovar algum projeto contra a Fake news,basta ver que os maiores beneficiados são a direita e a extrema direita,maioria no congresso. A honra,a ética e o caráter estão em baixa

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